Epidemia sombra ignorada pela Lei
A questão da violência doméstica no Brasil – cujas taxas aumentam desde 2017 – se agrava no contexto da epidemia da COVID-19, com as vítimas submetidas ao necessário isolamento social. Diminuíram as ligações para o Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência criada em 2005 e hoje gerida pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Dados deste serviço, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram uma queda nacional de 9% nas denúncias recebidas, comparando os registros do mês de março de 2020 com março de 2019. Mas há insuficiência de dados, uma tendência deste governo presente em diversas áreas, e por isto a pesquisa só conseguiu se deter às informações sobre os estados do Acre, Mato Grosso, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo. Com exceção de Mato Grosso e Rio Grande do Sul, todos os outros tiveram redução no número de denúncias. No Pará, a redução foi de 40% e, no Rio Grande do Norte, de 33%. Já no Mato Grosso, as denúncias aumentaram quase 10%.
A mesma pesquisa mostra que os números de feminicídios e homicídios de mulheres em São Paulo aumentou 46% na comparação de março de 2020 com março de 2019 e duplicou na primeira quinzena de abril. No Acre o crescimento foi de 67% no período e no Rio Grande do Norte o número triplicou em março de 2020. No Rio Grande do Sul não houve variação no número de feminicídios.
Este quadro não é particular ao Brasil e a “epidemia sombra” de violência doméstica – como nomeado pela ONU – tem sido registrada ao redor do mundo. No Brasil as circunstâncias se tornaram mais graves pelo enfraquecimento dos serviços de atenção às vítimas e pela conjuntura mais ampla de pandemônio político.
A Lei nº 13.979 promulgada em fevereiro, que dispõe sobre as medidas gerais de enfrentamento da emergência sanitária provocada pela COVID-19, não contém qualquer estratégia em relação ao problema da violência doméstica. É bem verdade que o Brasil dispõe de um marco legal robusto neste tema, dentro do qual se destaca a Lei Maria da Penha (LMP), de 2006, uma das grandes conquistas feministas. Com base nesta Lei (que cobra do Estado o dever de realizar campanhas de informação), o Conselho Nacional de Justiça e a Associação dos Magistrados Brasileiros, com apoio do Supremo e do Ministério da Justiça e da Segurança Pública lançaram, em 10 de junho a campanha Sinal Vermelho, onde as mulheres que estão sob ameaça são orientadas a recorrer à rede de farmácias como espaço alternativo para pedirem socorro.
Entretanto, medidas robustas precisam ser tomadas para garantir o atendimentos das vítimas. Constatada a grave lacuna na Lei Geral 13.979, proliferaram proposições legislativas para alterá-la (ou mesmo alterar a Lei Maria da Penha). Em ano eleitoral, a tramitação dessas propostas desperta interesses diversos, revelando uma teia imbricada de objetivos e intenções tanto progressistas como conservadoras. Este artigo lança um olhar sobre este panorama no Congresso Nacional.
Está mais difícil acompanhar a rotina do Congresso Nacional
Como medida de proteção contra o coronavírus, a rotina do Congresso Nacional foi adaptada, com a dinâmica de sessões virtuais e alterações no sistema de tramitação das propostas. Isto tem representado barreiras adicionais à participação da sociedade nos debates parlamentares, o que já vem se colocando no contexto de golpe ultra liberal no qual o país está imerso. Como analisa o Cfemea, esforços redobrados são necessários para acompanhar os trabalhos e conter retrocessos impostos pela forte ala conservadora.
Na Câmara Federal, uma iniciativa importante articula parlamentares eleitas em 2018, em torno da agenda das mulheres, através da Frente Parlamentar Feminista Antirracista, que conta com a participação de organizações dos movimentos de mulheres. A experiência de trabalhar a pauta da violência doméstica no contexto da pandemia mostra que há potencialidades, mas também escancara a dificuldade que é lograr um debate coordenado entre as parlamentares, que facilite o traçado de estratégias para apresentação conjunta de proposições, fortalecendo a bancada feminina nos objetivos que têm em comum.
Uma lei aprovada, vinte em tramitação e o estigma do aborto pairando no ar
Em 7 de julho, foi sancionada a Lei 14.022/2020, com as primeiras medidas específicas de enfrentamento da violência doméstica e familiar no período de emergência sanitária, beneficiando mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência. O projeto original tinha 19 deputadas como autoras e, na tramitação, mais 17 aderiram como coautoras. Ou seja, assinaram o projeto quase metade das deputadas em exercício, de 17 diferentes partidos[1]. Em síntese, a lei orienta sobre o atendimento presencial em caso de estupro e feminicídio, atendimento remoto com registros de ocorrência via site ou atendimento por telefone de emergência, além de medidas protetivas. O Senado também encaminhou à Câmara o PL 2.510/2020, que estabelece o dever, por parte de condôminos, locatários e síndicos, de informar às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
No Radar Feminista, identificamos pelo menos mais 20 projetos de lei (PLs) em tramitação que tratam do tema. Dois deles (PL 1.444/2020 e PL 1.552/2020) foram aprovados em 9 de julho pela Câmara, numa Sessão Deliberativa Extraordinária virtual. A negociação foi intensa no que diz respeito a pontos sensíveis como rendas emergenciais, aluguel social e audiência domiciliar, ao final aprovados. Outro ponto nevrálgico foram as menções à “promoção da saúde sexual e reprodutiva”, termo que precisou ser eliminado, ante as virulentas acusações de que esta formulação abre caminho para a legalização do aborto.
Em dado momento foi sugerido, como condição para aprovar o PL 1.444 (que a esta altura tramitava com 8 PLs apensados), incluir uma emenda afirmando que “os serviços de acolhimento institucional às mulheres em situação de violência […] não poderão realizar a prática do aborto, em nenhuma de suas formas”. Além do projeto de lei não tocar no tema do aborto, o marco legal brasileiro garante este direito em caso de estupro. A emenda foi rejeitada, graças ao esforço de algumas deputadas e da habilidade da relatora, Natália Bonavides (PT-RN).
Já o PL 1.552/2020, assinado por 23 parlamentares mulheres, foi aprovado após acordo tecido entre a Bancada Feminina, a Bancada Evangélica, a Bancada Católica e os principais líderes na Câmara, incluindo o Líder do Governo. Mesmo assim o alarde foi grande por parte de parlamentares alinhados ao bolsonarismo que publicaram conteúdos enganosos nas redes sociais (fake news), chegando a se referir a esses projetos de lei como “pacotão do abortoduto” ou “covidão do aborto”.
Atuação do governo em exercício
Entre as leis e a realização das políticas há um largo caminho, que passa pela execução dos recursos orçados. No que diz respeito ao Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos, pior do que não divulgar dados (vimos que os do Disque 180 são incompletos), é o desinvestimento e a falta de transparência sobre os gastos previstos na lei orçamentária para as ações de enfrentamento à violência doméstica. Mais de dez requerimentos do Legislativo já foram encaminhados, desde os primeiros meses de 2020, solicitando informações.
Deste modo a agenda dos direitos das mulheres, mais especificamente o enfrentamento à violência doméstica, vem sendo capturada – e distorcida – pelo governo em exercício, e especialmente por este ministério, com sua atuação ultraconservadora.
À frente da pastas, a ministra Damares Alves tem investido em campanhas de denúncia (veja também aqui), em detrimento do investimento em serviços. Enquanto a epidemia de violência explode por conta da insegurança do ambiente doméstico, o governo mantém a retórica de defesa da família nuclear e heterossexual, negligenciando a especificidade do problema, que requer uma resposta pela rede de atenção, abarcando justiça, segurança pública, assistência social e saúde, além de uma rede mais ampla de solidariedade para além da família.
Na mesma linha está o estímulo à criação, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, do sigiloso Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, divulgado em 23 de junho pela Portaria no 340. Esta medida é desfocada das reais carências da população, e desnecessária, já que dispomos de robustas diretrizes, nas leis de âmbito nacional e nos protocolos regionais e internacionais assinados pelo país. O Congresso reagiu: dois projetos de Decreto Legislativo foram apresentados para sustar o Protocolo, um na Câmara e outro no Senado, e um Requerimento de Informação (RIC) foi feito, cobrando explicações do Ministro da Justiça.
As iniciativas de cobrança por transparência nos gastos e explicações sobre a intenção de instituir um Protocolo secreto, se pouco resultado obtiverem nesses tempos sombrios, poderão ao menos proporcionar momentos iluminadores da busca por coordenar a sintonia entre parlamentares, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, em busca de uma estratégia comum que nos ponha no rumo de realizar direitos neste País.
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Angela Freitas (comunicadora social, militante da AMB)
Jolúzia Batista (assessora técnica do CFEMEA, militante da AMB)
Este artigo foi concluído em 7/08/2020. Ele foi escrito para o Boletim “Futuro do Cuidado – Justiça Reprodutiva em tempos de Pandemia” #1, lançado em 19 de agosto de 2020. Portanto, o artigo é anterior ao momento em que veio a público o caso da criança do Espírito Santo, grávida por estupro, que precisou viajar ao Recife para conseguir o direito à interrupção desta gravidez. O Boletim #2 irá tratar especialmente deste caso.
[1] PT, PSDB, PSL, PCdoB, PSOL, PROS, PSB, PTB, PP, PL, PODEMOS, Solidariedade, MDB, AVANTE, CIDADANIA, PDT e DEM