O futuro do cuidado já é presente: Sistemas feministas de atenção ao aborto autônomo[1]
Mariana Prandini Assis[2]
A pandemia da Covid-19 levou sistemas de saúde em diversos países como França, Inglaterra, Finlândia (Moreau, Shankar, Glasier, et al 2020), Colômbia (Sarmiento 2020), Nepal e Paquistão (Shroff 2020), a adotar modelos menos medicalizados de atenção e cuidado. Nesses modelos, a pessoa em busca de um aborto é chamada a participar mais ativamente de seu processo de cuidado recebendo do serviço de saúde, em casa, a medicação (mifepristona e misoprostol) e a informação necessária para utilizá-la com segurança e eficácia. Todo o procedimento é acompanhado remotamente, por profissional de saúde, seja por telefone ou aplicativo, garantindo-se que, em caso de emergência, a pessoa sob cuidados seja prontamente atendida.
Essa mudança tem sido celebrada, com muita razão, nos círculos comprometidos com os direitos sexuais e reprodutivos. De fato ela representa um avanço no sentido de se reconhecer o aborto como uma intervenção de autocuidado, como preconiza a própria Organização Mundial de Saúde (2019). O que pouco se reconhece, contudo, é que ativistas feministas pelo aborto autônomo (ou self-managed abortion, como é conhecido em inglês) vêm, há pelo menos duas décadas, construindo sistemas de atenção ao aborto autônomo que já utilizavam estratégias semelhantes, sendo ainda mais transformadoras, porque desafiadoras de dois poderosos sistemas de disciplina e controle – o direito e a medicina (Foucault 1979) que tiveram, como ainda têm, impacto especialmente danoso sobre os corpos de mulheres, particularmente as pretas e indígenas, e de pessoas trans e não-binárias.
Valendo-se da descoberta dos efeitos abortivos do misoprostol – uma prostaglandina sintética desenvolvida para o tratamento de úlcera gástrica nos anos 1970 – a partir da experiência prática de mulheres brasileiras nos anos 1980 (Barbosa & Arilha 1993) e da noção de que informação é um direito humano, ativistas feministas criaram, inicialmente, hotlines (linhas telefônicas) para tornar o uso clandestino do medicamento uma prática mais segura, socialmente aceita e humanizada. A primeira dessas hotlines na América Latina, Colectiva Salud Mujeres, foi fundada em 2008 no Equador e, desde então, vem oferecendo informação fundamental para alcançar o que elas chamam de soberania sobre nuestros cuerpos (Drovetta 2015), apesar de medidas de censura sofridas. O modelo das hotlines se espalhou pela região e pelo mundo. Hoje, além de fornecerem efetivo acesso a informação para milhares de pessoas que abortam, também contribuem como importante fonte de dados para estudos de saúde pública sobre a segurança, a eficácia e as razões pelas quais muitas pessoas preferem o aborto autônomo ao serviço medicalizado (Gerdts & Hudaya 2016; Gerdts, Jayaweera, Baum, et al 2018; Jelinska & Yanow 2018).
Mas as feministas não pararam por aí. Por um lado, com o avanço tecnológico, a ideia das linhas telefônicas foi adaptada para outras ferramentas, como fóruns de chat online e aplicativos de celular, que facilitam uma conexão transnacional de dados, informações e afeto pelo aborto seguro. Por outro lado, vários grupos começaram a oferecer o que se chama de acompanhamento, seja individual ou em grupo. Uma das redes de acompanhamento mais conhecidas hoje na América Latina são as Socorristas, que surgiu na Argentina em 2012, no contexto da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e Gratuito. Por entender que as pessoas continuam abortando independentemente do status legal, para as Socorristas é um imperativo feminista garantir que esses sejam abortos seguros. Representadas pela imagem de muitos pares de tênis cor-de-rosa em ação, as Socorristas transmitem a ideia de que estão sempre em movimento, prontas para atender a quem quer que necessite de apoio (Sutton & Vacarezza 2020). Elas coletivizam a experiência do aborto ao fazer encontros de acompanhamento em grupo, estabelecendo vínculos entre pessoas que, de outro modo, passariam pela experiência de forma solitária.
Tal como se deu com as hotlines, os coletivos e redes de acompanhamento feministas se multiplicaram pela região e pelo mundo, adaptando-se a contextos locais de leis mais ou menos restritivas, barreiras legais, culturais ou socioeconômicas de acesso ao medicamento, e necessidades individuais de cada pessoa acompanhada (McReynolds-Pérez 2017; Littlefield & Gottesdiener 2020). Em lugares que criminalizam o aborto em todas as circunstâncias, como é o caso de vários países da América Central, essas redes feministas têm feito o trabalho fundamental de garantir, a um só tempo, que pessoas tenham acesso a aborto seguro e não sejam vítimas do estado penal (Walsh 2020). Também como as hotlines, essas redes de acompanhamento vêm sistematizando seus conhecimentos e protocolos de atenção e, junto com organizações de pesquisa em saúde pública aliadas, inserindo o tema do cuidado feminista nos debates institucionais (Zurbriggen, Keefe-Oates & Gerdts 2018).
As intervenções feministas de cuidado e atenção ao aborto autônomo, embora muito diversas entre si, compartilham uma ética e um objetivo prático comum. Elas se orientam pelos valores da horizontalidade, solidariedade, autocuidado e cuidado coletivo, empatia, autodeterminação e confiança mútua. No alcance de seu objetivo – assegurar que as pessoas tenham um aborto seguro, apesar de leis restritivas, estigma e barreiras socioeconômicas – elas se mostram extremamente pragmáticas. Em vez de buscarem condições perfeitas de atuação, primam por alta qualidade dentro dos limites do possível, trabalhando com aquilo que têm à disposição de si próprias e das pessoas a quem servem. E as evidências até hoje produzidas sobre esse trabalho mostram seu sucesso, não apenas quanto à segurança e eficácia dos protocolos de saúde adotados, mas também à experiência relacional e humana que oferecem.
Um ponto importante a ressaltar é que o impacto dessas intervenções vai muito além da ampliação do acesso ao aborto seguro, autônomo e de qualidade. Este artigo, escrito a partir de uma multiplicidade de fontes bibliográficas, é mostra concreta de uma outra característica desses sistemas de atenção: sua publicidade e seu orgulho próprio. As feministas organizadas pelo aborto autônomo, ao tornar a experiência uma vivência de afeto, cuidado digno e empoderamento, contribuem também para a mudança dos entendimentos sociais sobre o aborto. Elas garantem acesso ao mesmo tempo em que combatem o estigma e disputam as narrativas na opinião pública. E nesse ponto, se distinguem de forma profunda do modelo medicalizado. Nesse modelo, o aborto continua sendo uma intervenção confinada a um espaço de silêncio e isolamento, encerrado nos muros da clínica ou do hospital, e sobre o qual só se fala para narrar histórias de sofrimento e dor. Sim, a experiência do aborto pode ser dramática para algumas pessoas, mas o que as narrativas produzidas a partir dos sistemas de aborto autônomo nos mostram é que essa experiência é muito mais diversa, complexa e múltipla, e inclui tranquilidade, alívio, empoderamento, liberdade e até mesmo alegria.
Os sistemas feministas de atenção ao aborto autônomo combatem, assim, os males decorrentes tanto da medicalização quanto da criminalização do aborto. Ao fazê-lo, recolocam esse evento da vida no lugar de normalidade que ele detinha antes que aqueles sistemas de controle e disciplinamento dele se apoderassem. Eles nos ensinam uma importante lição: é possível garantir segurança sem julgamento, eficácia sem hierarquia e, acima de tudo, cumplicidade e empatia sem anulação. Já é passada a hora de que as políticas públicas de saúde reprodutiva aproximem desses sistemas para, a partir deles, aprender e com eles cooperar. Essa aproximação pode produzir um sistema simbiótico emancipador, no qual a reprodução seja um espaço de potência e liberdade para todas nós.
6 de abril de 2021
[1] Este artigo foi construído a partir de ideias formadas em diálogos e trabalhos colaborativos com diversas pesquisadoras, dentre elas Sara Larrea e Joanna Erdman, a quem sou profundamente grata. Ele também não teria sido possível sem as feministas pelo aborto autônomo que, nos quatro cantos do mundo, sustentam formas transformadoras de cuidado. A elas, todo meu amor.
[2] Mariana Prandini Assis é advogada popular e pesquisadora interdisciplinar que utiliza ferramentas jurídicas para proteger e apoiar movimentos por justiça social e reprodutiva. É cofundadora do Coletivo Margarida Alves e pesquisadora afiliada ao Núcleo de Estudos sobre a Mulher, da Universidade de Brasília. Tem um mestrado em Ciência Política pela UFMG e um doutorado em Política pela New School for Social Research. Em 2019-2020 foi pesquisadora de pós-doutorado na Dalhousie University, no Canadá.
Este artigo foi lançado no Boletim Futuro do Cuidado # 4/ Abril de 2021, que pode ser lido aqui.