Proteção Integral e Cuidado Ético no Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes: a Resolução CONANDA nº 258/2024 (*)
Marina de Pol Poniwas Psicóloga (CRP-08/13821), Conselheira do Conselho Federal de Psicologia e Vice-Presidenta do CONANDA (2025)
Introdução
A Resolução nº 258, aprovada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) em 23 de dezembro de 2024, representa um avanço incontornável na proteção dos direitos de meninas e meninos vítimas de violência sexual no Brasil. Nascida de um processo de construção coletiva, escuta qualificada e enfrentamento a resistências históricas, a norma afirma o compromisso do Estado com uma infância livre de violências e com o cuidado ético e integral. É uma resposta normativa que se ancora nos marcos legais já existentes — Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Penal e tratados internacionais — reafirmando que nenhuma criança pode ser invisibilizada, silenciada ou revitimizada.
Este artigo analisa a Resolução nº 258/2024, destacando seus fundamentos jurídicos, o processo participativo de sua construção, as disputas políticas e judiciais que enfrentou, e sua importância estratégica para o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da infância e da juventude. A Resolução propõe diretrizes para o atendimento humanizado e para a escuta protegida de crianças e adolescentes, reconhecendo sua autonomia progressiva e garantindo o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, inclusive à interrupção legal da gravidez em casos de estupro.
Diante da ofensiva de setores conservadores que tentam sustar seus efeitos, o texto afirma a legitimidade institucional do CONANDA ao aprovar a normativa e a necessidade de consolidar sua implementação por meio de formação continuada, mobilização social e articulação interinstitucional. A Resolução nº 258/2024 é mais do que um ato administrativo, é um gesto político, ético e civilizatório. Em meio a tentativas de apagamento e retrocesso, ela se levanta como instrumento de afirmação da dignidade humana e da prioridade absoluta da infância e adolescência. Defender essa Resolução é afirmar que nenhum direito pode ser negado por medo, silêncio ou desinformação, e que proteger, neste país, é também um ato de resistência coletiva e compromisso com a justiça.
O CONANDA e sua Competência Normativa
Criado pela Lei nº 8.242/1991, o CONANDA é um órgão colegiado, paritário e deliberativo, com poder normativo infralegal e competência para formular diretrizes e fiscalizar políticas públicas voltadas à infância e adolescência. Sua composição — 15 representantes do governo e 15 da sociedade civil — garante representatividade e participação social. O CONANDA também é composto pelo Comitê de Participação de Adolescentes (CPA), conforme previsto na Resolução nº 191/2017, assegurando que as vozes de meninas e meninos também integrem a construção das políticas que os afetam. As resoluções do CONANDA vinculam os entes federados no que se refere à proteção de direitos fundamentais, orientando o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) em todo o território nacional.
Ao longo de sua trajetória, o CONANDA tem sido um espaço de resistência e afirmação de direitos, mesmo diante de inúmeros ataques e tentativas de esvaziamento político e institucional. Seja pela suspensão de seus recursos, pela não convocação de suas reuniões ou pela tentativa de revogar sua natureza deliberativa, o Conselho foi reiteradamente tensionado durante o governo federal de 2019 a 2022, quando foi desidratado em suas atribuições e teve seu funcionamento interrompido por uma gestão que via no controle social um obstáculo à imposição de retrocessos institucionais e violações aos direitos.
A legitimidade do CONANDA como instância normativa e deliberativa foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 622, que reconheceu a inconstitucionalidade dos atos do governo federal que haviam desestruturado sua composição e funcionamento, restabelecendo a participação social e a paridade em sua constituição. A decisão do STF garantiu a continuidade do CONANDA como principal órgão de deliberação, formulação e fiscalização das políticas públicas de promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, fortalecendo seu papel institucional e sua competência normativa.
É justamente essa história de enfrentamento que legitima o CONANDA na edição da Resolução nº 258/2024, porque nasce da coragem de um Conselho que nunca se furtou ao seu papel histórico de enfrentar violações, proteger crianças e adolescentes e afirmar direitos, mesmo sob ataques. A Resolução é, portanto, continuidade dessa trajetória de compromisso com o princípio da prioridade absoluta e da escuta qualificada de crianças e adolescentes — compromisso com sujeitos de direitos que carregam no corpo e na palavra a urgência de serem reconhecidos, protegidos e ouvidos. É um gesto de escuta que não é só técnica, mas ética e política: escuta que acolhe, que repara, que transforma. É uma resposta que está em consonância com sua missão histórica e com o compromisso constitucional de assegurar a prioridade absoluta de crianças e adolescentes nas políticas públicas.
Resolução 258/2024: Disputas políticas, judicialização e resistências conservadoras
A Resolução nº 258/2024 emerge como um marco de proteção e sensibilidade, traçando diretrizes para o atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. É um texto que se faz cuidado e resistência, afirmando a centralidade da escuta protegida, o respeito à autonomia progressiva e a inviolabilidade do sigilo nos atendimentos em políticas públicas. Não é uma resolução sobre aborto, mas sobre o direito de existir com dignidade. Sobre corpos que pedem acolhimento e não julgamento, que carregam marcas e clamam por justiça.
A Resolução afirma que o poder familiar não é um fim em si mesmo, mas uma ponte que deve conduzir à proteção integral da infância, jamais um muro que a isole ou silencie. Essa diretriz se faz ainda mais necessária diante da realidade gritante revelada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023) que aponta que 61,7% dos casos de estupro acontecem dentro de casa e que 84,7% das vítimas são violentadas por familiares ou pessoas conhecidas. Por isso, a Resolução reconhece, com firmeza e ternura, que há momentos em que comunicar os responsáveis pode significar empurrar a criança de volta ao lugar do qual ela tenta escapar — um espaço de medo, dor e ameaça, frequentemente habitado por aqueles que deveriam protegê-la. Nesses momentos, proteger é saber que a comunicação pode colocar aquela criança em risco, sendo necessário escutar como um gesto de cuidado. Essa escuta, quando feita com respeito e presença, pode ser a primeira fresta de luz onde antes só havia escuridão. A proteção começa ali, onde o ciclo da violência precisa ser interrompido, e a palavra da criança finalmente encontra eco e passa a ser ouvida.
Essa escuta é sustentada por fundamentos técnicos e jurídicos sólidos. A diretriz de não comunicar automaticamente os responsáveis em determinados contextos está amparada na compreensão de que o poder familiar não é absoluto, e sim um instrumento subordinado ao melhor interesse da criança e do adolescente. O atendimento humanizado, a preservação do sigilo e a escuta protegida integram o arcabouço normativo do Estatuto da Criança e do Adolescente e das normas internacionais. Assim, a Resolução 258/2024 conjuga, com rigor e sensibilidade, a técnica e a ética do cuidado, oferecendo respostas que dialogam com a letra da lei, com a vida e com os corpos marcados pela violência.
Desde sua aprovação, a Resolução nº 258/2024 tem sido alvo de tentativas infundadas e ilegítimas de ser suspensa, apresentadas por atores movidos por uma divergência moral em relação ao ato normativo que assegura a proteção do melhor interesse da criança e adolescente, dentre eles o direito à interrupção legal da gravidez para vítimas de estupro. Felizmente, até o momento, nenhuma dessas tentativas obteve êxito.
Em 24 de dezembro de 2024, um dia após sua aprovação, a Resolução nº 258/2024 foi lançada ao centro de uma disputa judicial movida por uma senadora que buscava anulá-la. Alegava-se vício no processo deliberativo — como se o gesto coletivo do Conselho pudesse ser desfeito. No entanto, o que se omitiu foi que o texto da Resolução foi construído de forma colegiada, com a participação ativa de representantes de órgãos governamentais que, posteriormente, votaram contra a sua aprovação por instrução da Casa Civil. A deliberação final ocorreu com quórum qualificado e votação expressiva, 15 votos favoráveis e 13 contrários. A principal alegação, no processo judicial, foi a ausência de concessão de um pedido de vista formulado pelo representante da Casa Civil. Mas, conforme reafirmado pelo próprio Plenário do CONANDA — instância soberana do Conselho, o regimento interno não permite vistas sucessivas, e aquela já havia sido concedida a outro órgão governamental. O novo pedido de vista e a instrução da Casa Civil visavam claramente barrar a aprovação da Resolução, num esforço de obstrução que desconsiderava o processo democrático e a legitimidade da construção normativa.
Ainda assim, em pleno recesso judiciário, a ação encontrou respaldo em um magistrado plantonista que a converteu em mandado de segurança preventivo e impediu a publicação da Resolução, em diário oficial. Sua decisão, no entanto, não se limitou a supostos erros procedimentais, mas avançou perigosamente ao suspender a eficácia de um ato normativo legítimo, ignorando a legislação que garante o direito à interrupção legal da gravidez em casos de estupro, desconsiderando a brutal realidade da gestação forçada na infância e priorizando, acima da proteção integral de meninas violentadas, uma interpretação ideológica disfarçada de neutralidade jurídica.
Neste cenário, o GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) interpôs recurso que, em 06/01/2025, foi acolhido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. O desembargador suspendeu a liminar e autorizou a publicação da norma, reconhecendo que a decisão de primeiro grau impôs um juízo ideológico incompatível com o direito vigente e desprotegia meninas em situação de extrema vulnerabilidade.
Em 15/01/2025, o mandado de segurança foi extinto sem resolução de mérito. A senadora, ainda irresignada, interpôs embargos de declaração que foram rejeitados. Por fim, o agravo de instrumento foi igualmente extinto em 07/02/2025, com trânsito em julgado em 13/03/2025. A tentativa de silenciar uma resolução viva, feita de escuta e dignidade, não encontrou respaldo na justiça.
Paralelamente, em 08/01/2025, uma deputada federal apresentou ao Ministério Público Federal uma Notícia de Fato, buscando sustentar, mais uma vez, que a Resolução nº 258/2024 seria ilegal. Tentava, por meio de um discurso disfarçado de legalismo, impor retrocessos a direitos fundamentais duramente conquistados. Em 10/01/2025, o MPF arquivou a representação, afirmando de forma categórica que não havia qualquer invasão da Resolução ao campo reservado à lei, pois a norma apenas concretiza o que já está inscrito na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção sobre os Direitos da Criança.
Esses episódios não apenas atestam a legalidade da Resolução nº 258/2024 como também revelam sua densidade política, sua raiz ética e sua urgência histórica. Ainda assim, grupos conservadores seguem inconformados com sua aprovação. Atualmente, duas ações seguem em curso com o objetivo de sustar os efeitos da Resolução, revelando o esforço contínuo desses setores em barrar avanços democráticos e impedir que o Estado brasileiro garanta, de forma concreta, os direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Além das ações judiciais, a Resolução também vem sendo alvo de intensos ataques no âmbito do Congresso Nacional. Até o momento, tramitam treze Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) que visam sustar seus efeitos — dez na Câmara dos Deputados e três no Senado Federal. Paralelamente, foram apresentados projetos de lei que pretendem proibir o CONANDA de discutir ou normatizar o tema do aborto, bem como foi reapresentado o Projeto de Lei 168/2021 que busca redefinir sua competência deliberativa, limitando seu papel institucional. Também se observa a municipalização da ofensiva conservadora com moções de repúdio à Resolução nº 258/2024, que têm sido aprovadas em diversas Câmaras Municipais, acompanhadas de iniciativas legislativas locais que visam dificultar o acesso aos serviços de aborto legal, inclusive quando previstos em lei. Essas ações, articuladas nacional e localmente, revelam o esforço sistemático de deslegitimar o CONANDA e impedir a concretização dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes.
Apesar destas iniciativas a Resolução nº 258/2024, segue viva! Nasce do compromisso inegociável com as infâncias violentadas e com a construção de um país que ainda hesita em reconhecer e enfrentar a dor de suas meninas. A Resolução é a continuidade de uma trajetória histórica de enfrentamento às violências, afirmando que nenhuma política pública pode ser legítima se não for, antes de tudo, escuta e proteção. É uma resposta normativa e política que afirma, com firmeza e coragem que cuidar também é resistir.
A urgência da implementação e da formação
Superado o ciclo de aprovação, o desafio agora é a implementação da Resolução 258. Para isso, o CONANDA articula com a Campanha Criança Não É Mãe, o Ministério da Saúde e a Defensoria Pública da União, a produção de um guia de orientação, cursos de formação e estratégias para garantir que conselheiros tutelares, profissionais de saúde, assistência social e educação compreendam e apliquem as diretrizes da norma.
Seu pleno alcance depende agora da articulação entre os entes federados, da oferta de formação permanente às equipes do Sistema de Garantia de Direitos, da sensibilização dos Conselhos de Direitos e Tutelares, e do dever e compromisso político de implementar suas diretrizes em todos os territórios.
Conclusão
A Resolução nº 258/2024 é uma resposta política, técnica e ética à tragédia silenciosa da violência sexual contra meninas e meninos no Brasil. Ao reafirmar que “criança não é mãe”, ela recoloca no centro do debate público a urgência da escuta protegida, do cuidado comprometido, da informação qualificada e do acesso pleno aos direitos sexuais e reprodutivos. Em tempos de retrocessos e fake news, defender essa resolução é defender a vida, a dignidade e o futuro de milhares de meninas brasileiras.
É preciso garantir sua efetiva implementação nos territórios, nas políticas públicas, nos fluxos de atendimento. Isso exige o fortalecimento da articulação federativa, a mobilização dos Conselhos de Direitos, a formação permanente das equipes do Sistema de Garantia de Direitos e o compromisso das instituições com práticas que escutem sem revitimizar, que cuidem sem moralismo e que protejam com coragem.
Implementar a Resolução nº 258/2024 é reconhecer que nenhuma política pública é neutra e que a omissão, quando se trata da dor de uma criança, também é violência. Escolher proteger é escolher agir. É afirmar que escutar com ética é o ponto de partida de qualquer cuidado real, e que o silêncio institucional, quando imposto, perpetua a injustiça. A proteção integral não pode ser promessa abstrata, ela precisa ser prática concreta, todos os dias, em todos os lugares.
A Resolução 258 está vigente. Falta agora fazê-la pulsar na realidade cotidiana dos serviços, das equipes e das políticas. É preciso que sua força normativa se transforme em presença sensível e atuante. O tempo de implementar é hoje, porque toda infância tem pressa, tem direitos, e não pode mais esperar. Cada dia de inércia custa uma vida, uma história, uma possibilidade de futuro.
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(*) Artigo baseado em palestra proferida no 11º Fórum Brasileiro de Aborto Legal (9/05/2025) e lançado no Boletim Futuro do Cuidado # 17, Junho de 2025.